Medidas adotadas pelos EUA contra o digital services tax
“Há muito tempo, em uma galáxia muito, muito distante … são tempos sombrios para os rebeldes”. O conhecido prólogo, aqui traduzido livremente, do segundo filme da saga Star Wars, Episódio V: O Império Contra-Ataca, lançado em 1980, parece descrever muito bem a atual situação entre os Estados Unidos e a OCDE, além dos demais países que pretendem instituir e cobrar tributos sobre os lucros realizados pelas grandes empresas de tecnologia.
O contexto é conhecido e vem sendo objeto de inúmeros artigos. Ao passo que a OCDE e a Comissão Europeia procuram estabelecer regras gerais para a tributação das grandes empresas de tecnologia, normalmente de origem e residência fiscal norte-americana, unilateralmente, os países membros ou não da OCDE vêm criando suas regras individuais de tributação sobre a receita bruta auferida pelas empresas de tecnologia (digital companies), ao que se tem chamado o Digital Services Tax (DST).
A Comissão Europeia propôs um imposto sobre o faturamento das denominadas digital companies à uma alíquota de 3% sobre as receitas derivadas de serviços de publicidade online, mercados online (marketplace) e vendas de dados coletados pelos usuários. Empresas com receita anual anual de 750 milhões de euros e de receita total na União Europeia de 50 milhões de euros estariam sujeitas ao imposto digital. O DST foi proposto como uma medida provisória até a UE reformar suas regras comuns de tributação para as empresas de atividades digitais. No entanto, a proposta foi interrompida no início de 2019, porque vários países membros se opuseram ao imposto. A Comissão Europeia anunciou que retomará o projeto do DST europeu caso a OCDE não chegue a um acordo internacional sobre tributação da economia digital em 2020.
Pelo lado da OCDE, a tributação da economia digital passou a ser objeto de trabalhos complementares ao Projeto BEPS, o qual não endereçou a questão de forma particular. Dessa forma, em maio de 2019 a OCDE lançou o work program para tratar dos desafios da tributação da economia digital. Referido programa vem coordenando a negociação entre mais de 130 países e, em decorrência das discussões desenvolvidas, o escopo de trabalho foi estendido, passando a ser referido como BEPS 2.0., compreendendo os projetos denominados de Pillar 1 e Pillar 2.
Pillar 1, Pillar 2 e Pillar 3
O Pillar 1 tem por objetivo tratar especificamente sobre os desafios da tributação da economia digital, enquanto o Pillar 2 concentra as discussões sobre o combate à elisão fiscal (tax avoidance) mediante o estabelecimento de uma alíquota mínima global para a tributação da renda. E, mais recentemente, diante da não conclusão do projeto BEPS 2.0., por falta de consenso entre os países, bem como em razão da pandemia causada pelo COVID-19, passou-se a considerar mais um novo projeto chamado de Pillar 3. A nova proposta de trabalho da OCDE tem por estudo a tributação dos superlucros das empresas da economia digital que se destacaram e vêm se sobressaindo durante a pandemia. Como é facilmente perceptível, o Pillar 3 está diretamente vinculado ao escopo do Pillar 1 e já é alvo de críticas no sentido de que o objeto da tributação da renda são os lucros e não há justificativa para se criar uma nova categoria de lucros, tal como o superlucros, realizando a distinção de contribuintes pelo tamanho do lucro ou, então, punir determinados contribuintes tão somente pelo sucesso atingido em razão de competência e da eficiência empresarial[1].
Ainda em relação à tributação da economia digital, a proposta atual é a de que as empresas multinacionais seriam tributadas em parte de seus lucros nos países onde os consumidores ou usuários estão localizados. Entretanto, por diversas razões, tais como a demora na conclusão do projeto BEPS 2.0., a falta de consenso entre os países ou, então, pelo agravamento da situação fiscal, diversos países têm iniciado suas medidas unilaterais.
DST na Europa
Dentre os países europeus que avançaram na instituição do DST, possivelmente o caso mais discutido foi o da proposta francesa do GAFA[2], implementada antes mesmo do início da pandemia já em 2019. A referida proposta estabeleceu a imposição de uma alíquota de 3% sobre a receita auferida nos mercados e serviços de publicidade online, incluindo a venda de dados do usuário em conexão com publicidade na Internet. Entretanto, a exigência do DST francês está suspensa até o final de 2020 em razão de ameaça de retaliação feita pelos Estados Unidos na imposição de tarifa alfandegária de 100% sobre a importação de produtos de luxo franceses, tal como será melhor comentado adiante.
Seguindo os passos franceses, o Reino Unido instituiu o DST britânico, o qual impõe uma tributação à alíquota de 2% sobre as plataformas de busca e mídias sociais em geral, bem como sobre os marketplaces. O DST britânico alcançará as empresas com receitas globais superiores a £500 milhões e a partir de £25 milhões dentro do Reino Unido. O imposto britânico entrou em vigência em abril deste ano mesmo diante de correntes negociações para um novo tratado de livre comércio. Contudo, diante das ameaças de retaliação dos Estados Unidos, tal como noticiado pela Bloomberg, foi proposta uma fase inicial de tributação na qual seriam abrangidas apenas as empresas digitais de serviços automatizados, tais como as plataformas de busca online e de mídias sociais, além da postergação da exigência sobre as empresas norte-americanas até 2021.
Ademais, no âmbito europeu, Áustria, Hungria, Itália e Turquia já implementaram a legislação para o DST. Bélgica, Eslováquia, Espanha e República Checa publicaram propostas legislativas para a instituição do DST, enquanto Eslovênia, Letônia e Noruega anunciaram oficialmente a intenção de criar o imposto digital. Já a Polônia suspendeu os trabalhos sobre a instituição do referido imposto. Fora do circuito europeu, podem ser destacadas as propostas legislativas do Brasil (PL 2358/2020 e PLP 131/2020[3]), Índia, Indonésia e Nova Zelândia.
As medidas adotadas pelos EUA
Diante deste cenário, no qual a tributação da economia digital recai majoritariamente sobre empresas norte-americanas, os Estados Unidos têm adotado medidas de contra-ataque para inibir a tributação de seus contribuintes e, ao mesmo tempo, preservar a arrecadação estadunidense. A resposta norte-americana às medidas unilaterais, incluindo a pretensão francesa, foi a abertura de investigação e ameaça de imposições tarifárias contra os países que venham a tributar as empresas norte-americanas. Tais medidas estão suportadas pela Seção 301 da legislação de comércio americana (Trade Act of 1974), a qual autoriza a retaliação unilateral pelo Poder Executivo de outros países que estejam a agir de forma injusta ou discriminatória na visão norte-americana[4]. De acordo com o Financial Times, o Sr. Robert Lighthizer, representante do comércio dos Estados Unidos, há uma preocupação de que as empresas de tecnologia norte-americanas passem a ser pesadamente tributadas por outros países como alternativa para o aumento da arrecadação tributária durante a crise sanitária. Ainda nas palavras de Lighthizer, traduzidas livremente, “os Estados Unidos estão preparados para adotar todas as medidas necessárias para a defesa das empresas e trabalhadores norte-americanos contra tal discriminação”.
A ameaça de imposição tarifária não é novidade, bem como se mostra estratégia conhecida adotada pelos Estados Unidos e já tomada no passado em disputas internacionais das mais variadas, tais como a instituição do FATCA com um withholding de 30% nas operações financeiras para os países/instituições financeiras que não viabilizassem as trocas de informações bancárias, a ameaça de imposições de tarifas alfandegárias caso o México não controlasse o fluxo de migração hondurenho e a guerra comercial com a China.
No que diz respeito às medidas endereçadas pela OCDE, notadamente em relação ao Pillar 1 e, por consequência, ao novo Pillar 3, os Estados Unidos manifestaram expressamente sua contrariedade a tais medidas que objetivam a tributação específica de certa atividade econômica e de determinadas empresas. Como reportado pelo Financial Times, o Secretário do Tesouro Americano, Steven Mnuchin enviou uma carta aos Secretários de Finanças da Espanha, Itália, França e Reino Unido, advertindo-os que a discussão sobre o DST chegou a um impasse e que os Estados Unidos seriam incapazes de concordar com uma tributação temporária em bases globais que afetasse as empresas digitais norte-americanas. A posição estadunidense é a de que deve ser pensado um regime internacional que vise a tributação generalizada das pessoas e não somente de determinadas empresas apenas em razão do tamanho e da capacidade de geração de lucro. Nesse sentido, como reportado pelo Tax Foundation, os Estados Unidos estariam muito mais confortáveis com as propostas endereçadas no Pillar 2, eis que tal projeto está em linha com a legislação norte-americana de tributação dos intangíveis, denominada de U.S. Global Intangible Low Tax Income (GILTI).
Como colocado no título do artigo, a maior economia do mundo e sede das maiores empresas de tecnologia, razão pela qual aqui tratada como Império, vem colocando em prática medidas protetivas e de contra-ataque às tentativas de tributação dos lucros das empresas norte-americanas nos locais de consumo dos serviços digitais, o que efetivamente pode barrar as negociações encabeçadas pela OCDE para a criação de um DST uniforme.
Autores de “O Império Contra-Ataca”
O artigo “O Império Contra-Ataca” é de autoria de Luciano Burti, advogado e mestre em direito tributário pela FGV-SP, e Thais Lipinski, advogada e LL.M pela Georgetown University. Ambos são sócios do CBLM Advogados, escritório especializado em direito tributário.
Notas citadas no artigo
[1] Nesse sentido, ver os comentários do Professor Pasquale Pistone.
[2] Denominação comum dada ao imposto francês em razão da explícita intenção de tributação das gigantes da economia digital: Google, Apple, Facebook e Amazon.
[3] O PL 2.358/2020 tem por escopo a instituição de CIDE-Tecnologia entre 1% e 5% sobre a receita bruta auferida pelas grandes empresas de tecnologia no que diz respeito: (i) à exibição de publicidade em plataforma digital para usuários brasileiros; (ii) ao marketplace em que um dos usuários esteja localizado no Brasil; e (iii) à transmissão de dados de usuários localizados no Brasil que tenham sido coletados durante o uso de uma plataforma digital. A CIDE-Tecnologia alcançaria a pessoa jurídica domiciliada no Brasil ou no exterior e pertencente a um grupo econômico que tenha auferido, no ano-calendário anterior, receita bruta global superior ao equivalente a R$ 3 bilhões e receita bruta superior a R$ 100 milhões no Brasil (critério cumulativo). Já o PLP 131/2020 pretende a majoração da COFINS para empresas de “elevada receita que utilizem plataforma digitais”.
[4] Sobre o tema ver o artigo de Rodrigo Luís Pupo e Tathiane Piscitelli no Valor Econômico de 18/06/2020: Tributação digital brasileira na berlinda; e Daniel Bunn para Tax Foundation em 02/06/2020.